Muitas vezes vistos como violentos por obrigrarem os jogadores a matar outros, são alvos de equívocos causados por ideias preconcebidas e não entendidas sobre a realidade que o jogo representa. Para entendermos esse equívoco da violência e morte, vamos tomar como exemplo o League of Legends, atuamente ainda no top 3 dos games mais jogados, considerado um esporte eletrônico reconhecido internacionalmente e, inclusive, um dos jogos mais pacíficos existente no mundo dos e-sports.

O LoL se passa em um mundo de fantasia, com personagens irreais e fictícios não humanos, em um mapa simétrico e espelhado chamado Summoner’s Rift – SR. Composto por 2 times de 5 integrantes, seus objetivos são chegar a base do time adversário e destruir o Nexus, uma espécie de pedra gigante. Para isso precisam avançar além da metade do mapa e destruir as torres que estão no caminho (pelo menos 5 torres são necessárias cair) para se atingir o objetivo. Durante o jogo os personagens precisam coletar recursos para melhorar suas habilidades. Esses recursos são obtidos principamente do próprio mapa, mas também da eliminação dos adversários. Observe que matar não é nem o objetivo final do jogo.

O principal equivoco em considerar que o jogo é violento por possuir mortes está em considerar a eliminação dos personagens como morte, e portanto resultado de um ato de violência. Primeiramente as eliminações não podem ser tidas como mortes. Morte é um conceito definido por 1. interrupção definitiva da vida de um organismo ou 2. fim da vida humana. O fato é que os personagens do jogo não representam vidas humanas ou quaisquer seres vivos reais, e sim personagens que compõem o universo da história. Segundo, a eliminação não é definitiva, uma vez que quando eliminado o personagem de quem perdeu a batalha é transportado para a base e fica paralizado por um período de alguns segundos. Nem mesmo seus itens são perdidos ou suas habilidades afetadas. Essa estratégia é apenas um artifício encontrado para dar como recompensa ao ganhador da batalha um tempo extra para obter livremente mais recursos ou avançar um pouco em direção ao Nexus para atingir seu objetivo. Logo, não existe morte no jogo (a salvo de animais e plantas, que também não são representações de animais reais, mas sim criaturas existentes somente em no mundo de fantasia).

Sobre as batalhas onde acontecem possíveis eliminações de personagens, deve-se considerar que uma eliminação é resultado de uma estratégia mal planejada, mal executado ou de um erro de cálculo mental pela parte afetada. Por isso os confrontos são o resultado de um planejamento e do esforço de um trabalho coletivo. Sem sombra de dúvida os confrontos são em muitas vezes os momentos de maiores emoções, pois é o momento de ação para qual o time se prepara e testa seu planejamento e estratégia. Durante uma partida completa diversas batalhas acontecem. Observe que essas batalhas não resultam em um time ganhador ou perdedor, mas sim um time que sai com mais vantagens ou desvantagens para atingir o objetivo (o Nexus). Para ambos os lados, essa diferença é um feedback que vai indicar se a estratégia está funcionando ou não contra a estratégia do adversário.

Ainda assim pode-se pensar nas capturas ou eliminações como resultado de um ato de violência. No entanto segundo a OMS, violência é o uso de força física ou poder, em ameaça ou na prática, contra si próprio, outra pessoa ou contra um grupo ou comunidade que resulte ou possa resultar em sofrimento, morte, dano psicológico, desenvolvimento prejudicado ou privação”. Conceitualmente um ato de violência precisa ser cometido por um ser vivo real, existente, contra outro ser vivo real, também existente. O objetivo do jogador humano nunca é agredir o jogador adversário, mas sim testar sua criação e suas habilidades contra a criação e as habilidades do outro jogador, como em qualquer esporte fisíco. A única diferença de uma partida de um jogo digital como LoL para uma partida de um jogo físico como futebol é o incremento de um personagem digital que o representa e pode possuir habilidades que um humano não possui, como voar.

Mas então por que os confrontos são vistos como ações violentas? Freud explica, ou melhor, Crawford, meu teórico favorito no campo.

Os jogos representam algo da realidade subjetiva. Jogos são objetivamente irreais e não recriam fisicamente as situações que representam, embora sejam subjetivamente reais para o jogador (Crawford, 1982). Ah como eu amo a teoria dos jogos: é profunda, filosófica e cheia de significados. Só quem joga consegue compreendê-la com plenitude, mas vou me esforçar para explicar. As simulações dos jogos criam um ambiente fictício, com uma história imaginária, onde cada jogador dá signicado internamente à experiência. Por esse motivo alguém que vê isoladamente um personagem desaparecendo de um local após receber mais dano de um feitiço conjurado do que seu escudo é capaz de suportar, pode ser vista como uma morte, resultante de uma violência, ao mesmo tempo que é entendida como resultado de um erro de cálculo, ou seja, um feedback dado pela simulação, que indica que o jogador precisa ter mais cuidado e planejamento na próxima vez. Ou seja, é essa subjetividade proporcionada pelo irreal que faz com que pessoas em situações distintas tenham interpretações diferentes e até conflitantes sobre o mesmo cenário.

Outro jogo passível de tal subjetividade é o Xadrez. Dois impérios que se enfrentam sacrificando personagens que representam objetos personificados (torre), animais (cavalos) e até pessoas reais como peões, bispos, damas com o objetivo de assassinar um rei. Veja que o xadrez está conceitualmente muito mais próximo de “um jogo violento cujo objetivo é matar” do que o LoL, uma vez que tem como objetivo final unicamente a captura do rei. Alias as capturas de peças encaixam-se completamente dentro do conceito de morte (interrupção definitiva da vida do personagem que representa um ser humano real).

Quantos não consideraram o xadrez como algo improdutivo ou negativo quando criado?

Ambos são jogos de estratégia, e LoL, enriquecido pelo recurso digital, oferece uma experiência ainda mais rica que um tabuleiro, desenvolvendo além das capacidades cognitivas, habilidades colaborativas. No entanto xadrez perpassa por centenas ou milhares de gerações enquanto jogos eletrônicos são recursos recentes e não integram a cultura de muitos. Praticamente todos hoje já experenciaram alguma vez uma partida de xadrez e assim sentiram sensação do desafio, da emoção do pensar, planejar e reagir às ações do adversário. Essa experiência possibilita o que resulta em um consenso de que, apesar da subjetivade contida na história, o que importa é a aprendizagem que ele proporciona. O mesmo acontece com aqueles que praticam com frequência algum esporte eletrônico. Está clara a diferença entre a realidade e fantasia. A subjetividade no significado dado por cada um é parte da fantasia. O aprendizado porporcionado e a interação humana é parte da realidade. É o único componente objetivo em toda a experiência, e portanto, é o que prevalece e importa de verdade.

E se isso tudo é subjetivo, porquê não pode estar tudo errado?

Ai é que entra o último ponto, a classificação etária. Não é de agora nem são razas as análises sobre conteúdos que apresentam violência. São necessários muitos estudos e compreensão do conceito de violência para ser capaz de diferir uma animação de um coiote se tranformando em uma figura bidimensional ao ser atindigo por uma bigorna gigante arremessada por um papaléguas de uma cena de violência com morte, mutilação e sofrimento encenados com realismo em um filme. É necessário método e metodologia para classificar e indicar onde, nesse expectro de diferentes formas de violência, está uma determinada obra. Para responder a pergunta “quão fantasiada ou quão realista é determinada cena?” entram os métodos de classificação e faixas indicativas de uma obra.

Há alguns anos no Brasil se iniciou um processo de estudo profundo sobre as representações dos temas violência, sexo e uso de drogas em obras, incluindo estudos científicos sobre o impacto desses elementos em crianças e adolescentes. Abaixo segue o manual de classificação que apresenta claramente exemplos dos níveis de violência que resultam em uma determinada classificação. Realize a leitura a partir da página 9 para entender como se dá a classificação.

Não veja o copo meio vazio.

Sinta o copo, experiencie seu conteúdo, alimente-se dele, e tera a certeza de que o que faz a diferença e importa, não é a parte (subjetiva) que o torna meio vazio, mas sim a parte (objetiva) que o torna meio cheio.